Não perdi o juízo. Minha espiritualidade
não foi a pique. Minhas muitas tarefas não me esgotaram. Entretanto, não cessam
os rótulos e os diagnósticos sobre minha saúde espiritual. Escrevo, mas parece
que as minhas palavras chegam a ouvidos displicentes. Para alguns pareço vago,
para outros, fragmentado e inconsistente nas colocações (talvez seja mesmo).
Várias pessoas avisam que intercedem a Deus para que Ele me
acuda.
Minha peregrinação cristã está, há muito,
marcada por rompimentos. O primeiro, rachei com a Igreja Católica, onde nasci,
fui batizado e fiz a Primeira Comunhão. Em premonitórias inquietações não
aceitava dogmas. Pedi
explicações a um padre sobre certas práticas que não
faziam muito sentido para mim. O sacerdote simplesmente deu as costas, mas antes
advertiu: “Meu filho, afaste-se dos protestantes, eles são um
problema!”.
Depois de ler a Bíblia, decidi sair do
catolicismo; um escândalo para uma família que se orgulhava de ter padres e
freiras na árvore genealógica – e nenhum “crente”. Aportei na Igreja
Presbiteriana Central de Fortaleza. Meus únicos amigos crentes vinham dessa
denominação. Enfronhei em muitas atividades. Membro ativo, freqüentei a escola
dominical, trabalhei com outros jovens na impressão de boletins, organizei
retiros e acampamentos. No cúmulo da vontade de servir, tentei até cantar no
coral – um desastre. Liderei a União de Mocidade. Enfim, fiz tudo o que pude
dentro daquela estrutura. Fui calvinista. Acreditei por muito tempo que Deus, ao
criar todas as coisas, ordenou que o universo inteiro se movesse de acordo com
sua presciência e soberania. Aceitei tacitamente que certas pessoas vão para o
céu e para o inferno devido a uma eleição. Essa doutrina fazia sentido para mim
até porque eu me via um dos eleitos. Eu estava numa situação bem confortável. E
podia descansar: a salvação da minha alma estava desde sempre garantida. Mesmo
que caísse na gandaia, no último dia, de um jeito ou de outro, a graça me
resgataria. O propósito de Deus para minha vida nunca seria frustrado, me
garantiram.
Em determinada noite, fui a um culto
pentecostal. O Espírito Santo me visitou com ternura. Em êxtase, imerso no amor
de Deus, falei em línguas estranhas – um escândalo na comunidade reverente e bem
comportada. Sob o impacto daquele batismo, fui intimado a comparecer à versão
moderna da Inquisição. Numa minúscula sala, pastores e presbíteros exigiram que
eu negasse a experiência sob pena de ser estigmatizado como reles pentecostal.
Ameaçaram. Eu sofreria o primeiro processo de expulsão, excomunhão, daquela
igreja desde que se estabelecera no século XIX. Ainda adolescente e debaixo do
escrutínio opressivo de uma gerontocracia inclemente, ouvi o xeque mate: “Peça
para sair, evite o trauma de um julgamento sumário. Poupe-nos de sermos
transformados em carrascos”. Às duas da madrugada, capitulei. Solicitei, por
carta, a saída. A partir daquele momento, deixei de ser
presbiteriano.
De novo estava no exílio. Meu melhor
amigo, presidente da Aliança Bíblica Universitária, pertencia a Assembleia de
Deus e para lá fui. Era mais um êxodo em busca de abrigo. Eu só queria uma
comunidade onde pudesse viver a fé. Cedo vi que a Assembleia de Deus estava
engessada. Sobravam legalismo, politicagem interna e ânsia de poder temporal.
Não custou e notei a instituição acorrentada por uma tradição farisaica. Pior,
iludia-se com sua grandeza numérica. Já pastor da Betesda eu me tornava, de
novo, um estorvo. Os processos que mantinham o povo preso ao espírito de boiada
me agrediam. Enquanto denunciava o anacronismo assembleiano eu me indispunha. A
estrutura amordaçava e eu me via inibido em meu senso crítico. A geração de
pastores que ascendia se contentava em ficar quieta. Balançava a cabeça em
aprovação aos desmandos dos encastelados no poder. Mais uma vez, eu me
encontrava numa sinuca. De novo, precisei romper. Eu estava de saída da maior
denominação pentecostal do Brasil. Mas, pela primeira vez, eu me sentia
protegido. A querida Betesda me acompanhou.
Agora sinto necessidade de distanciar-me
do Movimento Evangélico. Não tenho medo. Depois de tantas rupturas mantenho o
coração sóbrio. As decepções não foram suficientes para azedar a minha alma,
sequer fortes para roubar a minha fé. “Seja Deus verdadeiro e todo homem
mentiroso”.
Estou crescentemente empolgado com as
verdades bíblicas que revelam Jesus de Nazaré. Aumenta a minha vontade de
caminhar ao lado de gente humana que ama o próximo. Sinto-me estranhamente
atraído à beleza da vida. Não cesso de procurar mentores. Estou aberto a amigos
que me inspirem a alma.
Então por que uma ruptura radical? Meus
movimentos visam preservar a minha alma da intolerância. Saio para não tornar-me
um casmurro rabugento. Não desejo acabar um crítico que nunca celebra e jamais
se encaixa onde a vida pulsa. Não me considero dono da verdade. Não carrego a
palmatória do mundo. Cresce em mim a consciência de que sou imperfeito. Luto
para não permitir que covardia me afaste do confronto de meus paradoxos. Não
nego: sou incapaz de viver tudo o que prego – a mensagem que anuncio é muito
mais excelente do que eu. A igreja que pastoreio tem enormes dificuldades.
Contudo, insisto com a necessidade de rescindir com o que comumente se conhece
como Movimento Evangélico.
1. Vejo-me incapaz de tolerar que o
Evangelho se transforme em negócio e o nome de Deus vire marca que vende bem.
Não posso aceitar, passivamente, que tentem converter os cristãos em
consumidores e a igreja, em balcão de serviços religiosos. Entendo que o
movimento evangélico nacional se apequenou. Não consegue vencer a tentação de
lucrar como empresa. Recuso-me a continuar esmurrando as pontas de facas de uma
religião que se molda à Babilônia.
2. Não consigo admirar a enorme maioria
dos formadores de opinião do movimento evangélico (principalmente os que se
valem da mídia). Conheço muitos de fora dos palcos e dos púlpitos. Sei de
histórias horrorosas, presenciei fatos inenarráveis e testemunhei decisões
execráveis. Sei que muitas eleições nas altas cupulas denominacionais acontecem
com casuísmos eleitoreiros imorais. Estive na eleição para presidente de uma
enorme denominação. Vi dois zeladores do Centro de Convenções aliciados com
dinheiro. Os dois receberam crachá e votaram como pastores. Já ajudei em
“cruzadas” evangelísticas cujo objetivo se restringiu filmar a multidão, exibir
nos Estados Unidos e levantar dinheiro. O fim último era sustentar o evangelista
no luxo nababesco. Sou testemunha ocular de pastores que depois de orar por
gente sofrida e miserável debocharam delas, às gargalhadas. Horrorizei-me com o
programa da CNN em que algumas das maiores lideranças do mundo evangélico
americano apoiaram a guerra do Iraque. Naquela noite revirei na cama sem dormir.
Parecia impossível acreditar que homens de Deus colocam a mão no fogo por uma
política beligerante e mentirosa de bombardear outro país. Como um movimento,
que se pretende portador das Boas Novas, sustenta uma guerra satânica, apoiada
pela indústria do petróleo.
3. No momento em que o sal perde o sabor
para nada presta senão para ser jogado fora e pisado pelos homens. Não desejo me
sentir parte de uma igreja que perde credibilidade por priorizar a mensagem que
promete prosperidade. Como conviver com uma religião que busca especializar-se
na mecânica das “preces poderosas”? O que dizer de homens e mulheres que ensinam
a virtude como degrau para o sucesso? Não suporto conviver em ambientes onde se
geram culpa e paranoia como pretexto de ajudar as pessoas a reconhecerem a
necessidade de Deus.
4. Não consigo identificar-me com o
determinismo teológico que impera na maioria das igrejas evangélicas. Há um
fatalismo disfarçado que enxerga cada mínimo detalhe da existência como parte da
providência. Repenso as categorias teológicas que me serviam de óculos para a
leitura da Bíblia. Entendo que essa mudança de lente se tornou ameaçadora. Eu,
porém, preciso de lateralidade. Quero dialogar com as ciências sociais. Preciso
variar meus ângulos de percepção. Não gosto de cabrestos. Patrulhamento e cenho
franzido me irritam . Senti na carne a intolerância e como o ódio está atrelado
ao conformismo teológico. Preciso me manter aberto à companhia de gente que
molda a vida, consciente ou inconsciente, pelos valores do Reino de Deus sem
medo de pensar, sonhar, sentir, rir e chorar. Desejo desfrutar (curtir) uma
espiritualidade sem a canga pesada do legalismo, sem o hermético
fundamentalismo, sem os dogmas estreitos dos saudosistas e sem a estupidez dos
que não dialogam sem rotular.
Não, não abandonarei a vocação de pastor.
Não negligenciarei a comunidade onde sirvo. Quero apenas experimentar a
liberdade prometida nos Evangelhos. Posso ainda não saber para onde vou, mas
estou certo dos caminhos por onde não devo seguir.
PS: Estou postando este artigo não para concordar ou discordar da atitude do Pr Ricardo Godim. Meu desejo é só provocar o debate e a reflexão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário